nicole por nicole
Eis a historia do meu primeiro “pó vivo”...
Eu vivi esta história durante minha estadia em Beirute há algum tempo.
Depois de uma ausência de aproximadamente 10 anos, eu entro naquele que foi durante muito tempo meu quarto. E ali, ufa! Como nos “spleens” de Beaudelaire, eu mergulho na minha infância, minha adolescência, minha historia, meu berço.
Eu olho para este quarto, minha cama, a cruz pregada em cima da cama, pendurada, mantida por uma fita xadrez...azul.
Sento e observo minha mesa de cabeceira, bem empoeirada mas sempre ali, como eu a havia deixado, intacta. Observo. Uma mesa de madeira com uma gaveta, um vidro por cima, um abajur, um pequeno caderno e muitas fotos em preto e branco embaixo do vidro, fotos de família, a minha, nós, as crianças.
A vontade de recuperar uma das minhas fotos era tão forte que, sem hesitar, retiro o abajur para poder levantar o vidro e satisfazer meu ego.
No instante em que meu braço levanta o abajur eu vejo a marca exata e nítida que a base deixou e com um gesto automático e preciso, eu o devolvo exatamente onde estava, sem mesmo ousar tocar o pó “vivo” que dava um poder imenso a esta marca.
Hoje, eu pinto as marcas que estes barcos retirados da água podem deixar, eu esculpo o que uma ausência imprime, o que um livro em branco nos conta.
Nicole Mouracade
Em torno de lugares e ausências
Angélica de Moraes
O legado artístico de Nicole Mouracade nasce de uma realidade cada vez mais presente no mapeamento da produção cultural contemporânea: o desenraizamento de existências, as vidas nômades, ecoando memórias de perdas de geografias e afetos. Na contramão de obviedades teóricas e discursos postiços que costumam frequentar essa temática, há aqui a verdade do vivido.
Escavada na urgência de expressar uma identidade possível, negociada entre fronteiras, a obra alcança o equilíbrio da síntese autoral a partir de refrações de um mundo em transformação convulsiva e incessante, que dilacera horizontes e pertencimentos.
Há nesse conjunto uma poética sutil, de ponte sobre abismos. Intimista e sensível, ela se abre inteira à difícil e amorosa tarefa de sentir em profundidade a vida. Com tudo que ela tem de pesado ou diáfano.
Nascida em Beirute (Líbano), um ano depois do início da guerra civil, Nicole muito cedo misturou seu destino à instabilidade política da região, marcada por conflitos intermitentes. A artista era ainda adolescente quando imigrou sozinha para São Paulo, onde sua mãe já tinha se radicado uma década antes. Naturalizada brasileira, retornaria mais tarde a Beirute para graduar-se na Académie Libanaise des Beaux Arts. A volta e a permanência no Brasil não eliminaram a pulsão pelas idas e vindas.
Tecem o contexto de sua arte as marcas da influência cultural francesa sobre a matriz ancestral árabe, sublinhadas pelo convívio com a família tradicional libanesa paterna remanescente na cidade de origem e a ascendência materna judaica, radicada no Brasil. A produção visual daí resultante tem vocação universal, capaz de ressignificar vivências em diversas latitudes.
Há no conjunto extenso de trabalhos, que se espraia por diversas técnicas, meios e linguagens, um olhar cálido sobre as coisas. A pintura é habitada por delicadas refrações de luz, a demonstrar o amplo conhecimento das sutilezas da cor e da construção segura da composição, seja na vertente figurativa ou abstrata.
Na figuração, Nicole trabalha uma série de telas com o símbolo arquetípico do nomadismo: o barco. Recusando-se a cair no terreno raso das imagens midiáticas que banalizam a tragédia dos fluxos migratórios, a artista promove uma inflexão intimista que desprende o factual e mergulha no existencial.
Ela recorta a frágil canoa/indivíduo contra a vastidão amedrontadora do mar noturno, de um negror quase impenetrável. Ou a faz aporta em praia deserta, não se sabe ainda se acolhedora ou inóspita. São instantes de suspensão, antes do alvorecer/viver em outras coordenadas. Desses cenários soturnos e angustiados a pintura de Nicole pode se deslocar para o polo oposto, com igual competência na tensão poética.
É quando sua paleta adota azuis translúcidos e uma malha ortogonal por onde passeiam rastros de luz. Superfície líquida e hedonista de uma piscina revestida de pequenos ladrilhos retangulares a rebrilhar ao sol? Linhas que estabelecem uma cartografia celeste para ver as estrelas? Essa série de telas oferece rico diálogo para observadores sem pressa, esteja ele mais voltado para observações formais ou pronto para mergulhar em indagações sobre a temática.
A grelha de linhas, replicada e sobreposta em composições planares de abstração pura e volume virtual, de enorme leveza, apontam para a vocação tridimensional que iria desaguar, a partir de 2008, na produção de esculturas, objetos e instalações. Uma breve incursão pela fotografia sublinharia o olhar impregnado de percepção gráfica, que já tinha sido exercido com sucesso em desenhos e monotipias.
Ao lado da pintura, é com a escultura (entendida aqui como apropriação e acúmulo de objetos ou sobras de processos industriais e não como resultado da tradição artística de esculpir ou moldar formas), que Nicole Mouracade estabelece as duas vertentes mais importantes de sua produção.
Decorrem dessas ações em paralelo um intercâmbio de elementos que potencializam resultados. A cor migra das telas para as superfícies de ferro avermelhadas pelas epidermes de ferrugem. Há a aplicação de cores alegres e vibrantes no topo das peças da instalação ‘Campo Minado’ (2017).
Com “Campo Minado”, a artista propõe despertar uma percepção lúdica e convoca o espectador a intervir na disposição das peças. Há um paradoxo, porém: a obra reúne pesados cilindros de ferro, de diversas alturas e diâmetros, a propor ritmos ágeis e leves ao olhar. O que, claro, nos faz pensar que a alegria quase nunca é algo dado. É preciso construí-la sobre terreno perigoso, onde um passo pode ser fatal. Cuidado: as peças não aceitam qualquer arranjo. Guardam uma lógica interna que deriva de códigos cromáticos já percebidos como naturais mas que são constructos teóricos internalizados em nosso olhar. Algo assim como instinto com bibliografia.
As quadrículas da pintura também migram para a construção modular das peças tridimensionais. Essa bem sucedida contaminação criativa fica especialmente nítida na obra “99 quilos e um Buraco” (2016), magistral geometria de acúmulos feita com longas e delgadas barras de ferro retangulares dispostas de modo a formar um cubo frontal. Nas extremidades desse cubo, os pequenos quadrados de ferro vibram diversos tons de ferrugem e alguns resquícios de tinta nas superfícies rugosas. Empilhadas em equilíbrio instável, os módulos ganham a aparência de sólida coesão graças à aglutinação ótica das cores, que nos remete à superfície única e planar da tela. O enigmático buraco central (a falta que organiza a soma) não desestabiliza a peça, ao contrário, contribui para a ilusão de uma incongruente solidez.
O ferro é também o material dos livros/esculturas e livros/objetos em que a artista evoca a presença acolhedora da biblioteca de sua infância, perdida no tempo e no outro lado do oceano. Por vezes, são livros com páginas de lâminas metálicas tomadas pelo idioma ilegível da ferrugem. Um deles, asas duplas e brancas de gesso abertas sobre a mesa, parece invocar todos os livros que se perderam de seus leitores. Ou (quem sabe?) é a promessa de outra narrativa possível de ser escrita com o que falta. Ou, ainda, a existência que se desprende da matéria e resta como memória.
O tema da morte é recorrente na fase final da obra de Nicole Mouracade, com a urgência e a compulsão criativa de quem sabe ter a existência abreviada. A peça mais pungente, “Entretempos” (2016), reúne em associação surreal e improvável grossas correntes (talvez de algum navio) sobre ume maca hospitalar. O peso do existir alcança aí sua nota mais trágica, antes de ser evocada com extrema leveza (“Balança”, 2017). Neste trabalho, a artista recorre a antiga parábola egípcia segundo a qual o julgamento divino de uma existência humana para o ingresso na eternidade seria definido por uma balança. A alma boa deveria pesar menos do que uma pluma.
As trágicas correntes de “Entretempos” e a lírica metáfora da pluma integram um corpo de obra de grande talento e eficazes insights poéticos sobre anotações existenciais. Formulações em torno de lugares e ausências. Elas tanto podem flutuar nos rabiscos aéreos dos fios das pipas (série fotográfica “Acolhida”, de 2010) como se materializar em espesso monolito de cimento sulcado de leve para deixar o rastro de uma presença.
De modo explícito ou sutil, Nicole Mouracade criou poética artística que merece lugar nos acervos dos museus. Além da qualidade inegável do pensamento visual que caracteriza esse legado, há nele a captura e testemunho de um espírito de época. Desta nossa época, pródiga em deslocamentos de sentidos e existências.
Angélica de Moraes
São Paulo, agosto de 2019
Cadernos de Zizi
Magnólia Costa
Colecionar é coletar ou recolher objetos de natureza semelhante. Os fins visados por essa prática são tão ou mais variados quanto os motivos que sugerem os critérios de seleção dos objetos, muitas vezes inconscientes. Mais importantes que os fins são, porém, os princípios, e os que regem a prática colecionista são dois: a preservação e a ordenação. Colecionar é rememorar e organizar, é um modo de manter viva e nítida a memória de algo importante para o colecionador.
Nicole Mouracade-Nim é uma colecionadora. O objeto preferencial das suas coleções é a prática colecionista de seus antepassados, à qual faz referência com pinturas-livro, pinturas-caderno e, nesta exposição, com pinturas-palavra. Formadas com uma só pincelada de nanquim, as palavras pintadas por Mouracade-Nim propõem um texto imaginário grafado em uma folha de caderno, ele próprio uma coleção de registros.
Sendo produzidas em gestos únicos sobre os quais Nicole Mouracade-Nim tem controle relativo, as pinturas-palavra também podem ser vistas isoladamente, como as folhas dos cadernos em que Zizi, sua avó, registrava cada um dos objetos de suas numerosas coleções. Ainda que, de tempos em tempos, Zizi trocasse a coleção de caixas de fósforo pela de astrolábios nas paredes de casa, os cadernos lhe dariam acesso permanente a todas as coleções, eles inventariadas e racionalizadas.
Cadernos de Zizi evocam o desejo de apropriação e conservação, a memória afetiva que habita em cada um.